28 agosto 2018

Tatiana


Hoje é domingo.
Ela dorme nas encostas do lago.
No aconchego molhado da calçada fria.
O vento respinga impiedoso.
O travesseiro se despede do branco.
A bolsa recosta a cabeça em sonhos de uma Paris sem luz.
A coberta de avião, habituada a voos mais altos, faz o seu papel.

Ontem, o sábado cinza amanheceu testando os termômetros cariocas.
Uma cachaça barata lhe custou o quase nada que tinha antes do primeiro gole.
Onde estavam seu cobertor, o lençol, os trapos imundos a lhe proteger a alma?
Ela não sabia.
Talvez os tivesse perdido. Talvez tenha sido furtada.
Furtada ela foi. Muito antes de perder o cobertor.
Furtada do direito de ser.
E ficou só existindo.

A caminho da padaria, o sopro frio que vinha do mar me arrepiou.
Da ponta dos pés às gotas de dor que me encheram os olhos.
Então o travesseiro, a manta do avião, o moletom, a sacola Paris.
Ela aceitou os presentes.
Não sorriu.
Não disse palavra.
Não pousou os olhos em nada.
Vestiu a blusa.
Deitou a cabeça.
E eu a cobri.
Ela deixou.

Ainda está lá.
Sorri menos que ontem.
Olha mais longe.
Expressa o nada da desesperança mórbida que impera no mundo.

Chego em casa.
Minha filha me diz que as mulheres da rua têm mais medo.
Mais silêncios para dividir.
Mais motivos para se encolher.

Choro de novo. 
Choro o amor que não aguenta tanta crueldade. Tanta covardia.

Onde nasce a morbidez que nos anestesia e desumaniza a cada dia?

H.L.